Como consertar um prólogo

Em 2020, dois executivos da Disney estavam almoçando juntos e um disse para o outro: “Imagina se a Trinity, de Matrix, virasse uma Jedi. E aí ela estivesse de boas em um bar, numa galáxia muito, muito distante, e um assassino de Jedis aparecesse do nada para matar ela. Mas, em vez de usar armas e sabres de luz, eles começassem a lutar kung fu.”

O outro executivo ouviu aquela ideia maluca e respondeu a única coisa que podia ser respondida: “UOU.”

Então, o tal executivo resolveu contar para o chefe que tinha tido a melhor ideia de todos os tempos. E, quatro anos depois, surgiu “O Acólito” série. Que, não por acaso, foi cancelada após a primeira temporada.

Se você assistiu a tal série, sabe que ela é a pior coisa já feita desde a invenção das briófitas. E como curiosidade, em 2024 — ano em que esse texto foi escrito —, foram publicados 1 bilhão de vídeos no YouTube falando dos motivos da série ser horrível. Mas só dois vídeos explicando como ela poderia ser melhor. E os dois eram tão ruins quanto a própria série.

Por isso, eu decidi fazer explicar como consertar O Acólito, mas logo desisti porque demoraria sete anos e a Disney não paga meu salário. Ainda. Então, resolvi consertar só a primeira cena: o prólogo.

Mas algumas coisas importantes antes de começar:
Coisa importante número 1: este vídeo vai ter spoilers do primeiro episódio da primeira — e única — temporada de O Acólito. Mas acredite em mim: você não vai ser prejudicado se não viu a série.
Coisa importante número 2: eu não vou falar do Lore de Star Wars. Não sou especialista no assunto e já vi gente falando que gostou e gente falando que não gostou, e eu não vou entrar nessa briga porque tenho amor pela minha vida. Então, vou focar só na questão narrativa.
Coisa importante número 3: antes de consertar a cena, eu vou ter que explicar por que ela é horrível. Então senta, que lá vem história.

O prólogo de um filme ou série tem basicamente duas funções: dizer para a gente sobre o que é a história e apresentar a força antagonista. Ok, tem algumas outras coisas também, mas vamos focar nessas duas.

Se você não viu a série, a cena inicial de O Acólito mostra a Mae, que é a antagonista, chegando em um bar em um planeta qualquer e matando a Mestre Trinity Jedi. A ideia foi boa, porque já define que a história vai ser um thriller no universo de Star Wars, com uma antagonista perigosa. Afinal, se ela consegue matar uma Mestre Jedi, consegue matar qualquer um.

O problema é que a execução foi péssima. Isso porque, para a gente acreditar nessa cena, precisamos acreditar que Mae é muito — muito — perigosa. E o perigo pode ser mostrado de quatro maneiras: pelo visual, pela ação, pelo diálogo e de forma implícita. Vou explicar cada uma delas com alguns exemplos:

  • Um antagonista pode parecer perigoso e pronto. Tipo o cara do filme Pânico. Mesmo antes de matar a Drew Barrymore, a gente já sabe que ele é perigoso só pela máscara bizarra. Outro exemplo é o Alien do filme Alien. Só de olhar para ele, você já sabe que não vai dar bom.
  • A segunda forma de mostrar perigo é pela ação. E você já deve ter entendido que essas formas se complementam. Nos exemplos anteriores, primeiro você mostra que o antagonista parece perigoso e depois mostra ele esfaqueando alguém ou cuspindo ácido intergaláctico na cara da pessoa. Um outro exemplo clássico é o próprio Darth Vader: enquanto interroga o oficial da nave, ele levanta o cara do chão com uma mão só e acaba matando ele enforcado porque está sem paciência de esperar a resposta.
  • A terceira forma de mostrar perigo é pelo diálogo. Um dos melhores exemplos do cinema é Hans Landa. Visualmente, ele até parece simpático — tirando o uniforme nazista. E não faz quase nada no começo, a não ser conversar e tomar leite. Mas, se você viu a cena de abertura de Bastardos Inglórios, sabe que ele é perigosíssimo. Mesmo sem força física, o diálogo genial do Tarantino deixa isso claro.
  • Por último, temos a forma implícita de mostrar perigo, que do ponto de vista narrativo é uma das mais difíceis de se fazer. Em Matrix, por exemplo, os agentes não parecem perigosos: só são caras de terno. Também não falam quase nada na cena de abertura e a única coisa que fazem é perseguir a Trinity. A gente só entende que eles são perigosos porque a Trinity foi apresentada antes: ela voa, anda pelas paredes, acaba com vários policiais armados na base da porrada e consegue saltar de um prédio para o outro. E, se ela tem medo dos agentes, é porque os caras são brabos. Mesmo não parecendo, falando ou agindo como vilões, entendemos que eles são perigosos.

Agora, voltando para O Acólito:

  • A Mae, antagonista, não parece perigosa. Pode ser opinião, claro, mas compare ela com Darth Vader ou Darth Maul e você chega na mesma conclusão.
  • Ela também não age de forma perigosa. Apesar de lutar na cena de abertura, ela poupa o dono do bar quando vê que ele tem uma filha, deixando duas testemunhas. Eu não conheço nenhuma assassina de verdade, mas na ficção isso não me parece verídico.
  • Ela também não fala como uma assassina de Jedis. Suas falas são expositivas, tipo “Vou matar todos os Jedi, eu odeio vocês”. Soa bobo, nada perigoso. Parece uma adolescente histérica. E ninguém acha adolescentes histéricos perigosos… a não ser que sejam seus filhos.
  • E, de forma implícita, até dá para argumentar que ela pode ser perigosa, já que matou uma Mestre Jedi. Mas a forma como isso acontece é tão “que diabos é isso” que não convence. Sério, se a roteirista tivesse visto a primeira temporada de Naruto, teria escrito algo mais criativo.

Agora que já expliquei o que tem de errado na cena, vamos ver como consertar essa bagunça.

Cena 1:
Uma figura encapuzada entra num bar. O rosto está coberto e não conseguimos ver quem é a pessoa. Ela vai até uma mesa onde há uma Jedi com alguns outros caras. Um deles oferece gentilmente um lugar para a figura que está de pé. Ela ignora, olha para a Jedi e a ataca imediatamente, matando o homem gentil no caminho. A Jedi consegue se defender e, então, a luta começa.

Observação: Eu teria que fazer outro texto só para explicar como criar boas cenas de ação, mas esse não é o nosso foco, então vou pular direto para o final. Só vale lembrar que é difícil errar quando se mistura kung fu, sabres de luz e facas.

No fim da luta, parte do rosto da assassina é revelada para Trinity Jedi, que perde o foco por um breve momento e diz o nome: “Osha”. Ela também abaixa a guarda e é nessa hora que a assassina aproveita para matá-la a sangue frio.

Depois disso, a assassina percebe que ainda há algumas pessoas escondidas no bar e mata todas elas. Todo. Fucking. Mundo. Em seguida, sai como se nada tivesse acontecido. Sem dizer uma palavra e sem mostrar o rosto.
Mas assim que sai, a câmera abaixa lentamente e mostra um droid escondido atrás do balcão.

Fim da cena.

Tudo bem, todo mundo queria que Trinity Jedi não morresse no primeiro episódio. Mas na nossa versão, não ficamos tão putos com isso porque entendemos que, mesmo que a assassina não fosse mais forte que a Jedi, ela se aproveitou de um momento de compaixão e foi traiçoeira. Isso mostra que ela faria qualquer coisa para matar. Ela também não poupa ninguém no bar, eliminando qualquer testemunha — exatamente como uma verdadeira assassina faria. Não que eu conheça alguma.

Então, recapitulando: nossa cena inicial (1) define a trama na cabeça do público, (2) apresenta mistério: quem é a assassina e por que ela está matando Jedis — o que é essencial em um thriller — e (3) eleva a noção de perigo que vai permear toda a história. Afinal, se ela matou uma mestre Jedi, qualquer um está vulnerável.

Né por nada não, mas nossa cena ficou bem melhor que a original.

Agora é sua vez. Vai lá consertar o seu prólogo.

Já que está aqui, leia outro texto...

Ou compre um livro =)